domingo, 27 de junho de 2010

Tema: Sexualidade

O Beijo


O tema atormentava-a. Afinal o quotidiano não era assim tão normal como pensava, e o beijinho que dera na boca do Flávio, um rapaz alto, robusto e simpático, numa tarde de chuva num canto qualquer, depois do vigésimo olhar, com o reflexo dos pensamentos na ponta das línguas, que se enrolaram com fúria, deixou saudades do que não teve e do que não foi. Ela tinha-lhe posto os braços sobre ele, e nos olhos de ambos brilhara a mesma luz fixa. Não houve tempo para a sedução e a conversa. Viu-se longe, de perfil, na imaginação que tinha de si, grávida e só. Zulmira estava triste e contente, suspensa no seu alheamento, esquecida do tempo e de si própria, impessoal. A paixão tinha sido bela, simples e frágil. A vida afinal era mais imprecisa do que parecia. Zulmira vibrou e tremeu como os pássaros antes de gritarem, correu sem tempo e sem fôlego, enterrando os pés na terra cansada de chuva. No seu rosto havia uma fixação, uma obsessão. Escutou um susto. Era o despertador.




segunda-feira, 14 de junho de 2010

Tema: Traição


Amizade Infernal

O Rui nascera num bairro popular, onde habitavam ladrões e polícias, e por isso hesitou durante muitos anos que lado haveria de escolher. Como ladrão seria o maior, o mais provocador, o mais inspirado. Como polícia seria o mais criativo, o mais inovador, o mais inspirador. Vivia assim numa tensão, num conflito, num desespero, na dor. Parecia que o céu inteiro se juntara para o tramar. Ele sabia que o desastre era inevitável, que acabaria por chegar até que o tempo o apagasse da memória. Teve meditações viscerais sobre a natureza da violência urbana, lembrou-se do gang de adolescentes aparentemente fraternais, quando não estavam a lutar uns contra os outros. Se optasse pela polícia, que grau de traição seria? Não queria trair os amigos, mas por outro lado esse respeito impunha-lhe a sua submissão. Sentiu uma tensão e o sentido da ameaça, viu pesadelos no horizonte com criaturas sinistras, era uma luta entre o real e a fantasia. Não tinha aprendido a ser autêntico. O trapézio onde se encontrava não tinha rede. Estava a ir longe de mais para quem já tinha testemunhado o pior. Nunca poderia fingir ser o que não era.