sábado, 15 de maio de 2010

Tema:Vícios


Escravos do

Porque vivia num mundo difícil para se ser bom, Leonor inspirou com força o pó branco e ele entrou de rompante no nariz. Ouviu murmúrios que caiam uns sobre os outros, viu olhares hostis, medonhos e perversos, os pensamentos ficaram caóticos, excessivos, fantasmagóricos, estava ali e fora dali, distante com proximidade, num universo fragmentado no tempo e no espaço, com um clima de tensão no limite do insuportável, cheio de pássaros negros chocando no ar. A adolescente gritou desesperada quando se apercebeu que estava a perder os contornos, tornando-se distante e próxima, distante porque parecia estar a ser enrolada por acontecimentos contraditórios, próxima porque sentia o seu cheiro único. Foi coberta por um nevoeiro que alastrou e cerrou, sentiu um peso pesadíssimo sobre o corpo, viu no reflexo da janela que tinha uma sombra no rosto. A porta do quarto abriu-se e uma gótica com vestes negras e olheiras profundas espreitou. Leonor sentiu então o peso inexorável do destino, as pessoas do passado tornaram-se figuras reais, acreditou então que já não tinha um começo, estava sim num tempo de epílogo. Iria dar-se o grande e definitivo confronto com o destino.

sábado, 8 de maio de 2010

Tema - O Fim

Processo Metabólico

Ouviu o som muito baixo da sua respiração e os órgãos a funcionar. Fechou os olhos, tentando adormecer definitivamente. Não conseguiu. Olhou para o chão e fitou o tecto. Iria para cima ou para baixo? Sentiu que as palavras estavam a ficar fora do lugar, por breves instantes ouviu a música de uma trombeta. Relacionou tudo, sons, imagens, palavras, coisas, pessoas, atmosferas, ideias, sentimentos, vestígios, miragens. Uma volta na cama pô-lo cara a cara com sorrisos e formas há muito desaparecidos, que lhe fizeram acenos subtis e trocaram olhares cúmplices. Deu uma ordem ao corpo, mas ele não obedeceu. Procurou um pensamento mais forte, pensou no ontem e no amanhã, mas o ar estava saturado de cansaços, decadências, desistências e derrotas. Teve uma fúria lenta. Deu um salto e sentiu-se uma bola de sabão a elevar-se no ar. Apercebeu-se que estava a atravessar um espelho, porque viu a mão a cruzar o espelho. Reconheceu-se como alma. A partir daquele momento iria ser um viajante na noite, em busca de um alvorecer clarificador.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Tema - Superstição

O Anjo da Guarda


Maria contava que tinha tido uma experiência mística na adolescência, que a marcara para toda a vida: um encontro imediato com Mefistófeles. Só que a história ficava sempre pela metade e a parte do charro nunca mencionava. Era agora uma sofrida mulher de negro, com uma silhueta atípica, senhora de uma voz sem paz e de um medo profundo por um gato preto vadio, que escolhera por residência um buraco no telhado do prédio devoluto vizinho, resvés com a varanda do seu quarto. Maria guardava uma cautelosa distância do felino, que todas as madrugadas miava junto à roupa estendida. Mas uma noite acordou sobressaltada com o desespero do gato a bater-lhe freneticamente na janela de guilhotina, ao mesmo tempo que gritava desesperado. Sentiu pavor e deslumbramento. Pavor do fogo que se aproximava vindo da porta do quarto e deslumbramento por aquele gato preto que tanto temia, tudo isto acompanhado por memórias sensoriais da infância. Diante dos dois seres vivos desenrolou-se uma comédia indecifrável, que os contaminou e tornou a dissociação dos dois impossível de fazer. Nasceu assim um amor belo de ir às lágrimas, a preto e branco, milagroso, que teve a força dos acontecimentos.