domingo, 7 de novembro de 2010

Tema: o Além


A Visita

A meio da noite Isabel foi acordada por um suspiro sofredor e sonoro. Sentou-se na cama e começou a olhar com os seus olhos perscrutadores.

- Quem és tu? – Perguntou, com uma voz lenta e baixa.

As janelas abriram-se com estrondo, levadas por um vento e por uma tempestade inesperada, brilhante, veloz e aterradora, como se fosse, não do domínio do ar, mas do interior obscuro do quarto. E ao contrário do que era previsível, Isabel riu-se com satisfação, deixando cair uma lágrima. Só uma, que caiu indefinidamente, fazendo-a aperceber-se do seu amor pelas coisas.

- Afinal existes, e eu quero ser tua amiga! – Disse, ao mesmo tempo que agarrou numa caneta que estava na mesa de cabeceira para tirar apontamentos visuais e registar reflexões, com letras negras impressas em pequenas folhas brancas.

De repente tudo ficou calado, o vento, o pó e a rapariga. A figura esguia de Isabel levantou-se com uma gentileza leve e um gesto ritmado, aproximou-se das janelas e fechou-as.

- Queres que eu me constipe?

Uma sombra vaga rodeou-a e a rapariga controlou a ansiedade com um sorriso no rosto e uma calma no corpo.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Tema: Imagem


Espelho Meu

Quando a Vera estava em frente a um espelho comunicava mais pelos gestos do que pelas palavras. Ele era a porta de entrada do seu espírito sonhador. Deixava de ser a adulta que se governava pela ditadura do real, passando a reger-se pelos jogos do imaginário. Tossiu, para aclarar a voz, saudou a imagem para lhe conquistar a confiança e deixou sair uma ampla indignação exclamada de impropérios e gritos, que quase quebrava o espelho. Para ela o mais importante era voltar as costas à realidade. Conseguia assim conciliar as exigências contraditórias do sonho e da vida, mergulhando a fundo nas suas memórias, ilusórias miragens de felicidade. Às vezes fazia caras baças, outra vez caras brutas, às vezes a voz era rouca, outras vezes sobre-humana. Sabia que era capaz de grandes afeições, mas também de enormes raivas e ressentimentos, e isso assustava-a. Teve sonhos pequenos, um pouco mais longos, de novo pequenos. Era só em casa que os construía.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Tema: Desemprego


O ultimo Voo

Tudo começou com pequenas derrotas diárias que tentou superar com esforços rápidos. Descobriu que a vida era mais imprecisa do que parecia e a sociedade pouco amistosa, porque não dava tréguas aos perdedores. Enfrentava agora o desafio dos limites, estava em estado de desespero, nada encaixava em nada. Por momentos deixou-se embalar pelo estribilho do mar. Viu que as nuvens se encastelaram e as falésias enegreceram até ao impossível. Pôs as mãos na nuca e pensou no caos probabilístico da vida onde ninguém tinha a certeza de coisa alguma. Lembrou-se dos vícios e dos incontáveis ridículos. Olhou o mar. Uma tempestade rugiu com ventos e o céu desfez-se em água. Foi o sinal de uma coisa mais alta, e viu nele a forma indecisa de felicidade. Esvaziou o coração das mágoas e dos medos, rasgou um sorriso e atirou-se. Antes de se fundir com o mar o céu abriu para deixar surgir os últimos raios de uma luz lenta e leve, ouviu vozes vindas de uma raiva sem centro e apercebeu-se que a sua vida continha em si a sua própria negação.



domingo, 27 de junho de 2010

Tema: Sexualidade

O Beijo


O tema atormentava-a. Afinal o quotidiano não era assim tão normal como pensava, e o beijinho que dera na boca do Flávio, um rapaz alto, robusto e simpático, numa tarde de chuva num canto qualquer, depois do vigésimo olhar, com o reflexo dos pensamentos na ponta das línguas, que se enrolaram com fúria, deixou saudades do que não teve e do que não foi. Ela tinha-lhe posto os braços sobre ele, e nos olhos de ambos brilhara a mesma luz fixa. Não houve tempo para a sedução e a conversa. Viu-se longe, de perfil, na imaginação que tinha de si, grávida e só. Zulmira estava triste e contente, suspensa no seu alheamento, esquecida do tempo e de si própria, impessoal. A paixão tinha sido bela, simples e frágil. A vida afinal era mais imprecisa do que parecia. Zulmira vibrou e tremeu como os pássaros antes de gritarem, correu sem tempo e sem fôlego, enterrando os pés na terra cansada de chuva. No seu rosto havia uma fixação, uma obsessão. Escutou um susto. Era o despertador.




segunda-feira, 14 de junho de 2010

Tema: Traição


Amizade Infernal

O Rui nascera num bairro popular, onde habitavam ladrões e polícias, e por isso hesitou durante muitos anos que lado haveria de escolher. Como ladrão seria o maior, o mais provocador, o mais inspirado. Como polícia seria o mais criativo, o mais inovador, o mais inspirador. Vivia assim numa tensão, num conflito, num desespero, na dor. Parecia que o céu inteiro se juntara para o tramar. Ele sabia que o desastre era inevitável, que acabaria por chegar até que o tempo o apagasse da memória. Teve meditações viscerais sobre a natureza da violência urbana, lembrou-se do gang de adolescentes aparentemente fraternais, quando não estavam a lutar uns contra os outros. Se optasse pela polícia, que grau de traição seria? Não queria trair os amigos, mas por outro lado esse respeito impunha-lhe a sua submissão. Sentiu uma tensão e o sentido da ameaça, viu pesadelos no horizonte com criaturas sinistras, era uma luta entre o real e a fantasia. Não tinha aprendido a ser autêntico. O trapézio onde se encontrava não tinha rede. Estava a ir longe de mais para quem já tinha testemunhado o pior. Nunca poderia fingir ser o que não era.



sábado, 15 de maio de 2010

Tema:Vícios


Escravos do

Porque vivia num mundo difícil para se ser bom, Leonor inspirou com força o pó branco e ele entrou de rompante no nariz. Ouviu murmúrios que caiam uns sobre os outros, viu olhares hostis, medonhos e perversos, os pensamentos ficaram caóticos, excessivos, fantasmagóricos, estava ali e fora dali, distante com proximidade, num universo fragmentado no tempo e no espaço, com um clima de tensão no limite do insuportável, cheio de pássaros negros chocando no ar. A adolescente gritou desesperada quando se apercebeu que estava a perder os contornos, tornando-se distante e próxima, distante porque parecia estar a ser enrolada por acontecimentos contraditórios, próxima porque sentia o seu cheiro único. Foi coberta por um nevoeiro que alastrou e cerrou, sentiu um peso pesadíssimo sobre o corpo, viu no reflexo da janela que tinha uma sombra no rosto. A porta do quarto abriu-se e uma gótica com vestes negras e olheiras profundas espreitou. Leonor sentiu então o peso inexorável do destino, as pessoas do passado tornaram-se figuras reais, acreditou então que já não tinha um começo, estava sim num tempo de epílogo. Iria dar-se o grande e definitivo confronto com o destino.

sábado, 8 de maio de 2010

Tema - O Fim

Processo Metabólico

Ouviu o som muito baixo da sua respiração e os órgãos a funcionar. Fechou os olhos, tentando adormecer definitivamente. Não conseguiu. Olhou para o chão e fitou o tecto. Iria para cima ou para baixo? Sentiu que as palavras estavam a ficar fora do lugar, por breves instantes ouviu a música de uma trombeta. Relacionou tudo, sons, imagens, palavras, coisas, pessoas, atmosferas, ideias, sentimentos, vestígios, miragens. Uma volta na cama pô-lo cara a cara com sorrisos e formas há muito desaparecidos, que lhe fizeram acenos subtis e trocaram olhares cúmplices. Deu uma ordem ao corpo, mas ele não obedeceu. Procurou um pensamento mais forte, pensou no ontem e no amanhã, mas o ar estava saturado de cansaços, decadências, desistências e derrotas. Teve uma fúria lenta. Deu um salto e sentiu-se uma bola de sabão a elevar-se no ar. Apercebeu-se que estava a atravessar um espelho, porque viu a mão a cruzar o espelho. Reconheceu-se como alma. A partir daquele momento iria ser um viajante na noite, em busca de um alvorecer clarificador.